“Nós estamos em Foz do Iguaçu, tríplice fronteira brasileira, uma cidade conhecida do mundo todo, um patrimônio mundial, nesse belíssimo Estado do Paraná, tão importante na nossa Federação. E estarmos simbolicamente nesse momento numa cidade que é elo, serve para enfatizar o pórtico da minha exposição, que é exatamente a ideia de elo, de união, de convergência, de conjunção de esforços. Foi com essa reflexão que o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, abriu a conferência de encerramento do IX Encontro Nacional dos Tribunais de Contas (ENTC), no fim da manhã desta quinta-feira, 14, em Foz do Iguaçu, (PR).
O ministro prosseguiu, fazendo menção ao ato terrorista ocorrido na última quarta-feira (13), em Brasília: “Em contraposição, há uma lógica que marca o nosso tempo, que é a da pulverização do ultra individualismo, da dissolução dos laços interpessoais. Vimos, mais uma vez, infelizmente, os reflexos disso, fáticos, materiais naquele terrível evento de ontem à noite na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Isto, é claro, é lamentável, sob o ponto de vista humano. Uma pessoa morreu. Minha solidariedade à família dele, independentemente da circunstância, porque é uma vida humana. E, no certo sentido, destaco: esta pessoa que se pretendeu algoz de um crime, perpetrador de um crime, é, no certo sentido, um alerta para todos nós que cá estamos. O que faz uma pessoa deixar o seu lar, deixar a sua família para ir com bombas, tentar macular as instituições constitucionais centrais do estado brasileiro?”
Com o tema ‘Tribunais de Contas: Essencialidade na República – Papel na Sociedade Contemporânea’, Dino complementou o raciocínio inicial ao citar, novamente, o ocorrido na Praça dos Três Poderes: “Eu quero consignar que o ataque não é à estátua da justiça, que o ataque não é ao edifício do Supremo. O ataque é contra a legalidade, contra a constituição, contra os controles democráticos”.
Buscar a justiça
O Ministro enfatizou o papel das Cortes de Contas: “Os tribunais de contas são, como nós somos, guardiões de princípios fundamentais. Plasmados não só no artigo 37 ou nos artigos 70 e seguintes, mas plasmados em leis de grande importância como a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Uma abordagem consequencialista é muito importante, levar em conta as consequências práticas da decisão. Buscar o máximo coeficiente possível de justiça, prover segurança, estabilidade e previsibilidade a quem gerencia o dinheiro público, buscar consensualidade tanto quanto possível, mas sobretudo, estar à altura de alguns chamados que são importantes para nós, para nossas famílias, mas sobretudo para os nossos chefes: o cidadão, cidadãos do nosso país que pagam os nossos salários. Me refiro aos chamados atinentes à transparência, probidade, economicidade, eficiência, para que nós possamos com isso garantir que o dinheiro público chegue nos lares dos seus verdadeiros nomes”, destacou o Ministro para uma plateia de cerca de mil e quinhentas pessoas.
Na sequência, Dino abordou casos analisados pelo Supremo que têm direta ligação com os Tribunais de Contas. O primeiro deles sobre a questão das emendas parlamentares, cuja execução está suspensa pelo Ministro. “Se põe, de modo muito nítido, talvez pela primeira vez na história do Supremo, o debate sobre o devido processo legal orçamentário,” frisou. Ele ainda chamou a atenção para a transparência das informações: “Dinheiro público, diz a Constituição, tem que ter transparência, rastreabilidade e efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”, disse e enfatizou em seguida: “não existe hoje um portal no país que concentre a execução das emendas.”
Emendas pix
O ministro falou sobre a relevância de se dar um caráter republicano e transparente à destinação dos recursos públicos no país. Ele mencionou, em especial, as verbas destinadas aos estados e municípios por emendas parlamentares conhecidas como “emendas pix”. “O que está acontecendo com essas emendas? O gestor recebe o recurso e, se ele não lança numa plataforma, quando ele será julgado por isso? Nunca!”
Ao comentar sobre a decisão que tomou e que manteve a suspensão dessas transferências da maneira como, atualmente, são tramitadas, o ministro explicou: “O que eu determinei é que estes recursos sejam lançados na plataforma transfere.gov.br e nas plataformas estaduais, previamente à liberação dos recursos”. Afinal, considerou, o parlamentar não pode imaginar que, por ter sido o autor da emenda, seja o “dono” do dinheiro. E, também, é preciso definir as responsabilidades de cada instância de poder. “No Brasil, temos a parlamentarização das emendas orçamentárias sem a responsabilização correspondente do parlamento.
Vinculação e impositividade
Outra dimensão da sua decisão foi determinar que, quando a emenda for destinada à saúde, é necessária aprovação das instâncias do SUS. “Se o destino do dinheiro for uma ação de Saúde, quem tem que dizer qual ação será contemplada não é, unilateralmente, o parlamentar”. A avaliação técnica da destinação do recurso é especialmente importante devido aos problemas que têm surgido na sua aplicação. “Eu tenho essa preocupação porque tem se multiplicado notícias de mutirões de cirurgias oftalmológicas em que a pessoas estão perdendo a visão”, exemplificou.
Flavio Dino também determinou a vinculação federativa das verbas, ou seja, que o dinheiro vá para o Estado do parlamentar, ressalvadas ações de caráter nacional, como a Rede Sara. “O que explica um deputado de Rondônia por quase todas as suas emendas no Ceará? Isso é uma opção legítima? Não, porque ele representa o estado pelo qual foi eleito”. Nesse momento, se defendeu das acusações de que suas decisões paralisam investimentos públicos. “Talvez alguém já tenha ouvido que eu parei obras. Não parei obra nenhuma. Quem parou é quem mão cumpriu a Constituição. Quer continuar a obra, continue, mas, respeitando a Constituição”.
O ministro do STF criticou a impositividade das emendas: “Não existe alguém que possa, sozinho, decidir o destino do dinheiro público. Não pode existir emenda impositiva, que seja entendida como emenda decidida unilateralmente pelo parlamentar. A CF diz que a impositividade não impera sobre dispositivos de ordem técnica. “Juiz não inventa lei, mas, à luz do que o Congresso decidir, vamos ter de densificar o que significam ‘critérios de caráter técnico’”.
Atribuições dos TCs
Por fim, Flávio Dino mencionou a apreciação, feita pela Suprema Corte Federal, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 982, apresentada pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon). A ADPF 982 discute até que ponto as decisões dos Tribunais de Contas podem ser submetidas às Câmaras Municipais. Por meio da petição, a entidade requer o reconhecimento de que as decisões das Cortes de Contas produzam efeitos não só eleitorais, mas, também, quanto à aplicação de multas e à reparação ao erário. O ministro reconheceu que errou e que vai rever a decisão. “Acho que isso é a demonstração de que exercer o poder não seja algo que nos desumanize a ponto de nos tornar infalíveis”.
Sermão da Montanha
“Eu finalizo dizendo que nós precisamos usar bem as coisas boas do nosso tempo”, declarou. “Nós temos que saudar a tecnologia, as conquistas científicas que marcam o nosso tempo. A questão é o que nós fazemos das nossas vidas com elas, tanto na esfera pessoal como de funcionários públicos”. Católico fervoroso, Dino citou três passagens bíblicas. A primeira foi uma fala do apóstolo Pedro, que disse: “Sejam livres, mas não usem a liberdade para o mal”. O ministro considerou esse trecho bíblico especialmente importante em momentos como o atual, em que o conceito de liberdade é confundido como vale-tudo.
O segundo trecho bíblico citado por ele foi o Sermão da Montanha, no versículo que diz: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”. Segundo o ministro, as pessoas que têm recursos exercem as suas prerrogativas por si mesmas. Contudo, os pobres precisam do Estado e essa noção precisa nortear a vida do homem e do servidor público: “Na dúvida, fiquemos com eles.
Por último, na opinião do ministro, uma das partes mais bonitas da Bíblia: Quando Jesus se ajoelha para lavar os pés dos apóstolos. “O poder acaba, é efêmero, se esvai. O que fica é a dimensão de que na hora derradeira, possamos olhar para trás e lembrar das pessoas que nós amamos e que amam a gente”.
“Nós falamos muito de democracia. Ela não é um conjunto de adereços, de normas ocas, isso quem entende somos nós. O povo entende que democracia é um regime em que ele seja atendido. Eu compreendo que esse seja o desafio do nosso tempo: contrapor o humanismo ao tecnodeterminismo. Que a tecnologia não nos vença. Sejamos as âncoras, as correntes profundas da sociedade, não a espuma, que se dissolve na praia. Por isso nossa atividade é tão importante”.